terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Iluminar a escuridão (continuação)

   Medo leva à raiva. Raiva leva ao ódio. Ódio leva ao sofrimento. Mas, infelizmente, há uma altura onde é necessário combater fogo com fogo. Quando o ser humano perde toda a humanidade e fecha os olhos à razão, a Luz que emitimos não será suficiente para o fazer parar. Nesse instante é preciso um pouco mais: temos que ir bater à porta do coração.
   Para bater à porta, é essencial que não o façamos com raiva. Se nos afundamos com a pessoa que queremos salvar, então seremos dois a precisar de ajuda. E como é difícil travar uma situação extrema sem nos transformarmos naquilo que queremos travar. Para isso é preciso garantirmos que as nossas intenções são tão puras quanto podem ser. Qualquer ponta de escuridão crescerá dentro de nós e ficará para nos atormentar mais tarde. Mas não deixemos que isso nos impeça de agir. Se o nosso irmão ou irmã está em perigo, qualquer acção é melhor que a inacção. E nessa altura extrema, a guerra torna-se justificável.
  
Battering Ram - Jeff A. Menges

   Mas e depois de abrirmos a porta do coração?

   Aí é necessário iluminá-lo com toda a luz e calor que Deus tiver. Sem esta última parte, tudo terá sido em vão, e a escuridão continuará lá.
       

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Iluminar a escuridão

   Na vida somos muitas vezes confrontados com a escuridão, tanto dentro como fora de nós. Se ela provem do acaso, então paciência, tentamos preparar-nos melhor para a próxima e seguimos em frente; mas quando a escuridão é-nos imposta por outra pessoa, a solução já não parece tão simples. Somos subitamente invadidos por sentimentos de justiça, queremos mostrar à outra pessoa como está a ser incorrecta e como devia passar a agir no futuro. O problema é que mudar uma pessoa que não quer ser mudada é uma enorme perda de tempo. No fundo é como usar bombas para terminar uma guerra. Mesmo depois de acabar a última batalha, a guerra continua dentro dos "vencedores". E passa-se o mesmo numa discussão daquelas. A única maneira de vencer a guerra é com a paz, a indiferença com o amor, a escuridão com a luz. Podemos achar que é o nosso dever trazer a justiça à outra pessoa mas, se queremos realmente ajudá-la, devemos concentrar toda a nossa energia em estarmos bem, brilhantes, irradiando amor, ajudando humildemente tudo e todos. Como disse Confúcio, "é melhor acender uma vela do que maldizer a escuridão", e devemos acendê-la dentro do nosso próprio coração. Se fizermos isso, podem crer que eventualmente a luz chegará à pessoa que queremos ajudar.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Defeitos em nós

   Estamos a treinar no dojo, olhamos para o lado e vemos o nosso companheiro demasiado inclinado para a frente. Ora, se descobrimos um defeito nele, não devemos ficar satisfeitos. Em vez disso, devemos olhar para nós próprios porque o mais certo é estarmos a cometer o mesmíssimo erro que ele. Isto acontece porque é preciso o defeito estar em nós para sermos sensíveis a ele. Por isso é que é preciso cuidado quando apontamos o dedo a alguém. O mais certo é termos três dedos apontados a nós próprios também.


   Esta ideia prende-se com o quarto ensinamento que Gishin Funakoshi escreveu: Conhece-te antes de conheceres os outros. E que trabalho imenso dá conhecer-nos a nós próprios. Principalmente porque o mais provável é não gostarmos muito do que vamos encontrar quando olharmos para dentro.

   "O quê, mas eu tenho todos estes defeitos? Ah não, afinal já não gosto de Karate, vou mas é praticar uma arte marcial diferente."

   "Pois, mas o que encontraste em ti próprio continuará lá, e a solução não é desistir mas sim corrigir a atitude, a posição, a técnica..."

   

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

T,T,T!

   A solução para todos os problemas dentro do dojo parece ser sempre a mesma:
   T, T, T, ou Treinar, Treinar, Treinar!
 
Sim, é assim tão simples.

   Aluno: "Quando é que estou pronto para exame? Quanto tempo demora até ao cinto preto? Porque é que nunca diz ao Manel para treinar mais baixo? Porque é que um menos graduado foi escolhido para dar-me aula?"
   Mestre: "TTT..."

   Mas atenção que é T T T e não T T T T T T T T T T T T T, ou seja, treinar todos os dias até à exaustão, sem nenhum período de reflexão pelo meio, também não é bom. O ideal é que a recta de evolução do Karate seja contínua, sempre a subir, com o mínimo de quebras possível. Evoluir muito rapidamente e depois desistir e esquecer tudo não serve de muito. Já dizia o Mestre Gishin Funakoshi: 

"Karate é uma busca vitalícia" e "é como água a ferver; sem calor volta a ficar tépida."

   Por isso tratemos de aquecer a nossa água gradualmente e quando virmos o fundo seco, pomos mais um pouco, e voltamos a aquecer.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Aprendizagem prática

   Quem já treinou num dojo no Japão poderá confirmar que eles raramente falam. Enquanto no ocidente, se queremos aprender, explicam-nos como é, no oriente, mostram-nos como é. Nós usamos a mente, eles usam a atenção e a intuição.

   Outra forma oriental de pensar é encarar o engano como parte imprescindível da aprendizagem, não como algo que deve ser evitado ou escondido a todo o custo. Ter medo de errar é meio caminho andado para não agir, e passar mais tempo a planear que a experimentar.

   Imaginem como seria o ensino nas escolas se ele fosse dado como no dojo:
  • Tudo o que aprendêssemos seria através da prática,
  • Sempre de acordo com a natureza própria de cada um,
  • Com a única intenção de nos enriquecer a alma.

   Se assim fosse, provavelmente não gastaríamos tanto tempo a decorar coisas que acabaremos por esquecer, só para sermos avaliados e ordenados consoante o nosso "valor académico", valor esse que, além de falso, pouca ou nenhuma importância tem na nossa vida quando começamos de facto a trabalhar.

Aula de Karate na India

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Uno e Completo

  Muitos dos problemas que temos hoje em dia surgem quando vemos o Mundo de uma forma errada. Isto deve-se ao facto do nosso cérebro, por algum motivo, adorar encaixotar e ordenar coisas. Ou está dentro ou está fora; ou é Portugal ou é Espanha; ou está vivo ou está morto, ou é dia ou é noite; ou é homem ou é mulher. O problema é que esta mente dual que nos rege não tem suporte no mundo real. O mundo não é preto e branco; nele estão contidas todas as cores do arco-íris. Nesta altura poderão haver aqueles que pensam que não é bem assim, que há coisas que ou estão ligadas ou desligadas: o famoso código binário de zeros e uns que rege os computadores, por exemplo. Mas se virmos bem, ele está baseado na electricidade, que quando vista de perto é tudo menos dual.

Um relâmpago visto em câmara lenta.

   Então se na natureza tudo é a manifestação de um espectro contínuo, porque é que haveríamos de pensar de forma diferente? Porque é que não concebemos a ideia de que existem "coisas" que não podemos ver porque pura e simplesmente não têm uma natureza dual? Porque é que não nos libertamos das ferramentas linguísticas que criámos para nos facilitar a vida e começamos a experienciar o mundo tal como ele realmente é: uno e completo.

rainbow-art.deviantart.com

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Dar e receber

   Parece fácil mas não é. Quando os excessos são tão óbvios, dar só ou receber sempre, a dificuldade está em encontrar o meio termo, o tal Caminho do Meio. Se somos tão generosos que só oferecemos, então não estamos a dar a oportunidade às outras pessoas de retribuírem, e isto gera um desequilíbrio que é mau para todos.

   Subjacente a esta ideia está o conceito de Yin-Yang. Se Yin é passivo e Yang é activo, há a tendência para pensar que Yang é superior, que domina sobre Yin, mas isto é falso. São os dois igualmente importantes e acontecem em simultâneo; a única diferença é que Yang toma a iniciativa. Se Yin não aceitar activamente, Yang não pode oferecer activamente. Sei que pode parecer confuso, mas basta imaginarmos duas pessoas a dançarem a valsa. Se avançam as duas, chocam e há desequilíbrio. Se recuam as duas, o resultado é semelhante, só que inverso. Mas se uma avança e a outra, em vez de avançar ou recuar, permanecer imóvel, gera-se na mesma um desequilíbrio.
   
   
Oferecer activamente <=> Receber activamente.

   Mestre Gishin Funakoshi disse num dos seus ensinamentos que não devemos esquecer a aplicação e remoção de poder, a extensão ou contracção do corpo. E isto prende-se com a nossa relação com o outro. Se ele está a ser Yang, a tomar a liderança no ataque, a falar, a ser activo, então podemos ser um pouco Yin, defendendo, escutando o que ele está a dizer, seguindo os seus movimentos, mas depois deveremos ser nós a assumir a vertente Yang, e ele deverá recuar para Yin. Desta forma fecha-se o círculo e formamos juntos o equilíbrio.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

De pequenino...

   ... é que se torce o pepino. Ou assim diz o ditado. Mas quão pequenino tem o pepino de ser para o começarmos a torcer?
  

   Se Karate é um caminho de descoberta, de relacionamento, de construção de um mundo melhor, então não fará sentido que seja preciso ter idade suficiente para compreender estes conceitos antes de começarmos a fazer verdadeiro Karate? Talvez, mas então e o Karate infantil que, inegavelmente, tantos benefícios traz aos mais novos? Desde melhorias na coordenação motora, respeito, atenção e resistência física? ...Mas mesmo que tenhamos isso tudo puxado ao limite, será que está certo?


   Esta é a Mahiro, tem 7 anos, é cinto negro e está a fazer uma das katas mais difíceis com uma perfeição quase robótica. Agora pergunto: davam-lhe uma arma para a mão? Acham que ela já tem maturidade suficiente para saber o que fazer com ela? Será que já deve saber o que fazer com ela? É que todos os ataques no Karate são sérios e perigosos, com o potencial de ferir ou matar se não forem executados com cuidado. Claro que também haverá quem diga que as crianças não são todas iguais, e que aos sete anos, uma criança japonesa já possui uma disciplina e um autocontrolo que muitos de nós nunca possuiremos durante toda a vida. Haverá também quem defenda que é essencial começar-se o mais cedo possível se queremos alcançar níveis prodigiosos no caminho que há-de vir.
   Quem tem razão, não sei. Só sei que é preciso ter-se certas faculdades desenvolvidas para poder tirar proveito de uma aula de Karate, e essas faculdades só se desenvolvem a partir de certa idade. O que para algumas crianças vem aos cinco anos, para outras virá mais tarde. E para não se estar a impor um limite, talvez o melhor seja deixar a decisão ao critério dos pais ou educadores, sempre de acordo com o que as crianças mais precisem; não de acordo com o que eles querem que as crianças precisem.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Sensibilidade

   Sensibilidade é uma qualidade essencial para qualquer karateca. O dicionário define-a como a capacidade de sentir, de ter bondade e compaixão, mas também de ser capaz de avaliar algo de forma precisa. É preciso sensibilidade para encontrarmos a justa medida na técnica, no esforço, na interacção com os outros. O problema é que com uma sensibilidade maior, vem também a propensão para nos irritarmos mais facilmente, para sermos mais susceptíveis a ofensas. E isto é quase matemático. Se abrirmos mais o coração, mais coisas poderão entrar, tanto boas como más, o que nos deixa com duas opções. Podemos fechar-nos e viver com medo de sermos magoados, ou podemos abrir-nos e viver sabendo que podemos ser magoados independentemente do que façamos, e que, por isso mesmo, de nada servirá fecharmos o coração a nós e ao mundo. Haverá quem diga que a segunda opção é parva, masoquista até, mas eu acho que é a única forma de viver.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Alimentação

   Nós somos o que comemos, ou assim diz o ditado. Talvez por isso é que haja tanta controvérsia misturada com o tema da alimentação. Muitas pessoas definem-se pelos gostos (ou aversões) que têm, e protegem-nos ardentemente se for preciso, como se deixar de comer algo significasse a perda de uma parte vital da sua personalidade. Se a isto aliarmos insegurança e a necessidade de colmatá-la comendo muito, ou muito de algo, então temos nas mãos um assunto realmente delicado.

   Há quem diga que precisa de comer carne dia sim dia não para não sentir fraqueza, que soja ou tofu não são comida de gente, que peixe não puxa carroça, entre outras coisas. Se isto é verdade ou não, não sei, mas o que posso dizer é que quase nunca como carne, e só muito, muito raramente como peixe. Posso também dizer que o impacto ecológico da produção de um kilo de carne é bastante superior ao de um kilo de um vegetal qualquer. Excluindo todos os argumentos sobre o sofrimento animal que está inegavelmente associado à massificação da produção de carne, pelo menos o do impacto ecológico não é uma opinião, é um facto.


   Isto de comer carne tem mesmo muito que se lhe diga. E acho que o maior problema é a separação total do animal, aquele indivíduo que nasceu, brincou, viveu, e aquilo que nos aparece no prato. Se tivéssemos que ser nós a criar e a matar, será que comeríamos tanta carne? Ou pelo menos, será que a comeríamos dando-lhe tão pouca importância? Provavelmente não. E provavelmente deixaríamos de comer certas coisas, especialmente leitões, bezerros e outros bebés.

   Mas esta falta de consciência na altura de levar a comida à boca não se fica pela carne. Para mim, o respeito que é devido ao animal é o mesmo que é devido às plantas. Afinal não tiveram elas também de morrer?

   Certamente que haveria muito mais que podia dizer, mas gostava de terminar dizendo apenas isto: Tentem comer racionalmente, respeitosamente e moderadamente. 

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Ligação espiritual

   Uma vez um mestre disse-me que a transmissão do conhecimento no karate não é feita através da fala, descrevendo como deve ser feita uma técnica, nem sequer pela visão, vendo outra pessoa executá-la. Ele disse-me que a transmissão no karate é feita pela via espiritual.

   É claro que ajuda se imitarmos uma pessoa enquanto ela executa a técnica, mas o que realmente nos faz evoluir é quando nos ligamos a ela, e trabalhamos com ela, e usamos o seu esforço para crescermos também. No fundo temos que nos sentir tão unidos ao outro que é como se partilhássemos o mesmo corpo.

   É por causa desta ligação que às vezes sentimos que crescemos imenso na presença de uma pessoa mesmo sem termos trocado uma palavra com ela.

Meditation - http://gorosart.deviantart.com

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Tenshingoso

   A última kata a ser criada é da autoria de Shigeru Egami e chama-se Tenshingoso, 天真五相.

Ten, 天: Céu;
Shin, 真: Verdade;
Go, 五: cinco;
So, 相: aspecto, fase.

   Juntos, os kanjis podem ser traduzidos como "as cinco expressões da verdade universal," e esta kata ensina-nos tanto... não apenas sobre o mundo, mas sobre a parte do mundo que está dentro de nós.
   No início estamos enrolados, aguardando pacientemente como um embrião adormecido, até que nascemos e crescemos e expandimos em direcção ao céu; olhamos para trás sem deixar de encarar o futuro e aprendemos com os nossos antepassados; viramos a atenção para a frente e mergulhamos as mãos na matéria, lentamente, até batermos no fundo, e aí percebemos que há algo mais e começamos a elevar-nos até que abrimos o véu e temos um vislumbre do que está além; recolhemos tudo o que aprendemos, tudo o que possuímos, e oferecemos tudo; no final, se sobrar, ficamos com um pouco para nós; definhamos, morremos e voltamos ao início.  

   E esta é apenas uma das interpretações da Tenshingoso. Podemos vê-la como o ciclo da água, com várias fases como o gelo, o vapor, as nuvens, os raios, a chuva, mas também como os cinco elementos, terra, água, madeira, fogo e metal, cada um representado por um conjunto de órgãos no nosso corpo. Podemos fazê-la em silêncio ou com som, dizendo A, E, I, O, U em cada uma das etapas, fazendo vibrar o dojo e a nossa alma enquanto o dizemos. Podemos compará-la às diferentes fases da nossa vida, quando estamos no útero e nascemos, depois a infância, a adolescência, e a idade adulta, quando somos mais velhos, até que morremos.

   A Tenshingoso pode ainda ser feita em conjunto, com um parceiro a agarrar-nos as mãos, e aí ela ensina-nos a forma correcta de lidarmos com o outro. Se o agarrarmos com força, com medo de o largar, então iremos perdê-lo mal ele se começar a mexer, mas se formos com ele, acompanhando e sentindo cada um dos seus movimentos, sendo conduzidos mas também conduzindo, então estaremos os dois a trabalhar por algo maior, e quando alcançamos essa união, tudo corre bem e a sensação é incrível.

   E tudo isto numa kata tão simples:

Há muitas formas de fazer a Tenshingoso. Aqui está representado apenas uma delas.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Larga o que não precisas

   Muitas vezes dizem-nos que o verdadeiro treino de Karate só começa em cinto preto e que até lá só estamos a largar o que não precisamos. Mas claro que isto não é inteiramente verdade. Aprendemos várias técnicas desde o cinto branco, só que estas técnicas servem sobretudo para nos desafiar e fortalecer o espírito.

   No cinto branco o desafio é mais físico. O corpo está preso e recusa-se a obedecer. Depois, no cinto amarelo, vem a altura de baixarmos e resistirmos; é aqui que a nossa energia é testada. Depois, em cinto verde e azul, virão as dúvidas emocionais, contra nós, disfarçadas de orgulho e insegurança, ou contra os outros, colegas e mestre. E por fim, já em cinto castanho, virá o maior desafio de todos, as dúvidas racionais, de todas as mais matreiras porque são as que nos conhecem melhor. É aqui que nos questionaremos sobre tudo e todos os motivos parecerão levar-nos a fazer uma pausa e ir fazer outra coisa qualquer que não seja continuar a treinar

   Mas, e se mesmo depois de largarmos todas estas camadas que nos pesam a alma, conseguirmos chegar a cinto preto? Bem, se caminhámos até aqui o mais provável é irmos encontrar desafios ainda maiores, tanto dentro como fora de nós próprios; assim é o Caminho do Karate.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O Caminho

   Cada um de nós tem um Caminho. Podemos esforçar-nos por segui-lo o mais fielmente possível ou podemos desviar-nos e andar eternamente às voltas. Temos essa opção. Mas por mais que nos iludamos, o caminho continuará lá, e nós (lá bem no fundo) sabemos que nos perdemos.
   Desviar muito do caminho trará consequências para nós ou para os que nos rodeiam. Essas consequências não são boas nem más, apenas nos ajudam a regressar ao Caminho. E da mesma forma que existe apenas um caminho, existem também infinitas formas de nos desviarmos dele, infinitas formas de fazermos uma técnica mal feita, infinitas formas de agirmos erradamente numa determinada situação.


   Agora pergunto: Se estamos num caminho tão perigoso, com tantas formas de nos perdermos de nós próprios, então o melhor não será percorrê-lo cuidadosamente, um passo de cada vez e, se possível, seguir alguém que já tenha percorrido um caminho semelhante?

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Elevar a chama

   Nas aulas, é frequente pedirem-nos para endireitarmos a postura, para não estarmos nem inclinados para trás nem para a frente. Este erro acontece porque a ideia que temos de nós próprios está muitas vezes errada, e a prova disso é quando o mestre nos endireita e tudo no nosso corpo grita que antes é que estávamos bem, e que agora sim, estamos completamente tortos. Mas em vez de forçarmos os músculos das costas e do pescoço para nos esticarmos para cima, talvez o melhor seja adoptarmos uma estratégia diferente.


   Uma vela não está direita porque se contrai. Toda ela flui e ondula e aponta para cima, elevada pela leveza do seu próprio ser. E porque haveríamos de ser diferentes? Mais do que procurar uma postura recta, o melhor será procurar uma atitude recta. Se fizermos isso, podem crer que também nos elevaremos tão naturalmente como a chama de uma vela.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O mestre agricultor

   Inicialmente, o agricultor cuida das sementes de forma semelhante. Afinal, elas ainda se estão a desenvolver. É preciso descobrir aquilo em que se querem tornar. Mas depois, quando os rebentos já estão maiores e a precisar de mais espaço, é preciso transplantá-los e mudar de estratégia ou não vão crescer bem.

   Todas as pessoas são diferentes, precisam de coisas diferentes; e é aqui que a experiência do mestre é fundamental.
   Um miúdo irrequieto talvez precise de treinar a paciência e a ligação com o próximo enquanto uma senhora de meia idade talvez beneficie mais de alongamentos simples e de alguma força nas pernas.

   Cabe ao mestre ser o agricultor que ajuda os seus rebentos a crescer em direcção à luz, metendo estacas, fazendo podas, dando os nutrientes quando e na dose que cada um precisa, para que um dia também eles se transformem em agricultores e tenham rebentos ao seu cuidado.

   Partir os alunos é fácil. Fazê-los crescer é mais difícil.


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Preguiça

Sloth - Nikola Kucharska
   Mestre Murakami costumava dizer que a Preguiça era o pior de todos os "defeitos". O dicionário define-a como "propensão para não trabalhar" ou "demora ou lentidão em agir", mas o que não diz é que ela é dos vícios mais matreiros, e pode manifestar-se das formas mais incríveis:
   Se o dever exige que façamos algo que não queremos de maneira nenhuma fazer, ela adoece-nos o corpo para termos uma desculpa válida para não o fazer. Ou lembra-nos que temos a casa suja e a precisar urgentemente de uma limpeza. Ou que afinal existe um primo em segundo grau que não vemos há vários anos e que decidimos que temos mesmo que visitar agora ou nunca mais o faremos.
   A Preguiça é a inacção, o atrito, a força que nos pesa o espírito, e tem que ser combatida todos os dias, em todas as acções, desde o lavar a loiça ao decidir sobre o nosso próprio futuro. Deixá-la tomar conta é meio caminho andado para começarmos a passar os dias fechados em casa, longe de tudo e todos, completamente perdidos de nós próprios.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Musubi (União)

   Os japoneses têm uma palavra que surge muitas vezes associada a união, ligação ou conexão. Essa palavra é musubi (結び) e representa algo essencial no karate.

   Quando vemos um bando a voar sincronizadamente, não vemos nenhum pássaro a parar subitamente e a fechar as asas só porque acha que se enganou, ou a voar sozinho à frente do bando ou já teria sido rapinado há muito tempo. Todos eles estão unidos sob os mesmos princípios e todos mantêm a sua individualidade própria. E é isto que tem que acontecer nos treinos.

   Mais do que a técnica individual, o que realmente conta é a proximidade e a união do grupo como um todo. Sem isso seria impossível alcançar-se algo tão belo como isto:


Bando de estorninhos

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Água

   Por vezes desistimos dos nossos sonhos quando encontramos um obstáculo. Vemo-lo como prova de que nos enganámos no caminho e voltamos para trás. Ora, a água não volta para trás nem muda de direcção quando encontra uma pedra no meio do rio. Ela envolve-a e contorna-a e segue sempre o seu caminho. Se for muito forte pode até passar-lhe por cima, mas nunca a ignora.
   Ignorar um obstáculo é negar o desafio que a vida nos lançou; é fechar os olhos a uma lição importante que devemos aprender. Podemos ignorar o obstáculo mas isso provavelmente fará com que o encontremos novamente a jusante.


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Bloqueio mental

   As palavras que usamos (e pensamos) têm força e modificam a realidade do nosso futuro. Dizer que não conseguimos é meio caminho andado para, de facto, não conseguirmos. Mas claro que normalmente não somos assim tão determinados.

   Sensei - "É preciso mudar a lâmpada do dojo, podes tratar disso?"

   Aluno - "Pois é, já estamos a treinar às escuras há algum tempo, então vou ver se consigo arranjar tempo para tratar disso para a semana."

   E claro que para a semana o dojo continuará às escuras, e porquê? Porque subjacente a esta forma de pensar está uma teia racional complexa e gigantesca que enreda e impede qualquer forma de acção. Pensar em fazer algo não é a forma mais rápida de a fazer. A forma mais rápida é simplesmente fazê-la! É levar as mãos à frente, avançar de corpo e alma e fazer o que tem que ser feito!


   Se conseguimos ou não fazer um pontapé, se o queremos fazer, se o devemos fazer, como exactamente o vamos fazer... entrar nesta forma de pensar é entrar numa espiral que muito provavelmente não nos levará a lado nenhum, e certamente não nos fará lançar o pontapé. Se só a prática e a repetição levam à perfeição, então de que serve pensar tanto?

Já dizia o mestre Yoda. Tentar não, Fazer ou não fazer. Não há tentar.


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Mais do que a soma das partes

   O cavalo e o humano. Separados, são impressionantes. Juntos, dão origem a um terceiro elemento. E é este elemento, esta ligação, que deve ser trabalhada impiedosamente no karate. Não apenas o corpo, nem apenas a mente.

"O todo é maior que a soma das suas partes."

   Se o cavalo for o corpo e o cavaleiro a mente, a ligação de que falo manifesta-se, por exemplo, na capacidade de movermos o corpo sem o forçar; de saltar, deslizar e voar sem as articulações se oporem. Mas a união das duas partes é mais do que uma saber dominar a outra. As duas têm que trabalhar em conjunto, o cavalo e o cavaleiro, o corpo e a mente. Temos que ouvir o que o corpo tem para dizer já que é ele que nos mostra as técnicas corretas, mas não podemos deixar que seja ele a dominar-nos. Às vezes é preciso um pouco de incentivo para o cavalo se mexer. Mas quando ele já está habituado à nossa voz e já sabe saltar sozinho, então a harmonia foi alcançada, e o verdadeiro trabalho pode começar.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Tocar o limite

   Já escrevi sobre os limites no passado mas nunca tinha chegado tão perto deles como no treino de hoje. Por cada exercício que estava habituado a fazer, tive que fazer três ou quatro vezes mais, durante mais tempo, e indo mais longe em cada um deles.
 
   E isso trás consequências muito interessantes.
   
   Primeiro vem o cansaço e as dúvidas - será que vou conseguir continuar? - Depois vem a dor e a rigidez - tens que parar se não vais-te lesionar. - E era aqui que eu normalmente ficava. Nesta zona de manutenção controlada de dor. Mas afinal há pelo menos mais dois estágios.
   
   Se o exercício for de contracção muscular contínua como, por exemplo, quando mantemos o zenkutsu-dachi durante muito tempo, a dor transforma-se em calor, e o calor transforma-se numa sensação quase indescritível: é ao mesmo tempo fria, luminosa e maciça. E depois disso não sei o que vem...

   Mas hoje o exercício era outro. Hoje tínhamos que nos mover sempre, e a seguir à dor e à contracção vem um estado novo e agradável de relaxamento e naturalidade. O corpo simplesmente já não tem mais força para se manter contraído por isso ondula e desliza como água. As costas parecem uma mola que suporta os braços e os braços voam separados do corpo. Não existe cabeça nem ombros, e as pernas estão apenas lá, movendo-se sozinhas e falhando mais vezes de que eu gostava de admitir.

   E o que virá depois? Ainda não sei, mas pareceu-me ter visto algo luzir no horizonte. Talvez da próxima vez consiga aventurar-me um pouco mais longe.


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Shin Gi Tai


Shin - Gi - Tai
   Tudo o que fazemos dentro (e fora) do dojo devia seguir o mesmo princípio:

心, lê-se shin e quer dizer mente, coração, espírito.
技, lê-se gi e quer dizer técnica, arte.
体, lê-se tai e quer dizer corpo, físico, postura.

   Primeiro a mente, depois a técnica e depois o corpo. Sempre nesta ordem e com um grau decrescente de importância.

   Fortalecer apenas o corpo não serve de muito se depois não soubermos como ou quando usá-lo. Procurar a perfeição técnica é preferível mas também não basta porque nos deixa vazios, como robôs capazes apenas de executar movimentos perfeitos mas depois falta-nos o que mais importa: a ligação com o outro, a coragem, a paciência. Tudo isto é Shin, e é o mais difícil de treinar.

   Como treinar a coragem? A paciência? A capacidade de harmonizar? Talvez seja uma boa ideia olharmos para cima e respirarmos fundo.

   Mas se quisermos simplificar a aplicação deste princípio basta-nos ver um gedan-barai bem feito. Primeiro olhamos para o adversário, depois preparamos as mãos em hikite e só depois é que movemos as pernas. Shin - Gi - Tai.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O sentimento por trás da técnica

   Existe um sentimento por trás de cada acção. E por sentimento, não me refiro a sensação. Lançar um tsuki devia ser acompanhado de leveza, de liberdade, de uma imensa vontade de voar. Quando treinamos, devemos procurar estes sentimentos que se escondem por trás dos movimentos. São eles que nos mostram a forma correta de executar cada técnica. No fundo é como a combinação de um cofre que temos que encontrar sozinhos. Existem muitas maneiras de fazer um gedan-barai, e certamente que quase todas estarão erradas, mas se procurarmos entrar naturalmente no ataque do oponente sem nos opormos a ele, provavelmente estaremos no bom caminho.

   

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O topo da montanha

   O caminho das artes marciais é como a subida de uma montanha. Pode parecer plano no início, mas à medida que subimos, o piso vai ficando mais inclinado, mais irregular, com pedras soltas onde podemos tropeçar. Virá o vento, a chuva e a neve; virá o orgulho, o egoísmo e a inveja, mas temos sempre que deixá-los passar enquanto continuamos em frente.

   No nosso caminho encontraremos aventureiros que seguem trilhos diferentes. Podem dizer-nos que estamos perdidos, que nunca chegaremos ao topo se não os seguirmos, mas não tem problema. A verdade é que todos buscamos o mesmo, e há muitas formas de lá chegar.


   Há quem diga que no topo da montanha conseguimos ver todos os outros caminhos, mas se em vez de olharmos para baixo, tivermos coragem de olhar para cima, é certo que descobriremos uma montanha ainda mais alta que aquela que acabámos de subir. Podemos ignorá-la e dizer que já atingimos a perfeição, ou podemos aceitar que tal nunca existiu, e aceitamos descer para podermos voltar a subir a montanha seguinte.



quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Mestre Tetsuji Murakami

   Tetsuji Murakami. Sempre que fazemos saudação, é para ele que nos curvamos. Sempre que pensamos na figura do mestre por excelência, é a imagem dele que imaginamos. Foi ele que introduziu o Karate na Europa e norte de África, visitando frequentemente países como França, Itália, Portugal, Alemanha, Inglaterra, Jugoslávia, Argélia e Suíça.
   Entre outras coisas, foi conhecido pelo seu método de ensino duro e rigoroso tanto física como mentalmente, e para melhor ilustrar isto basta vermos algumas das frases que dizia regularmente:
"Não procurar a facilidade."
- Porque o caminho fácil é perigoso, enfraquece, e não leva a lado nenhum.
"Primeiro, é necessário quebrar o corpo."
- Não no sentido de destruí-lo mas sim de quebrar os bloqueios que a vida lhe impôs para que depois possamos moldá-lo em algo melhor.

Mestre Tetsuji Murakami

sábado, 26 de julho de 2014

Força centrífuga perigosa

   Se tomarmos como ponto de referência o nosso oponente, existem dois tipos de força que podemos aplicar durante o kumite:

Símbolo de
 concentração de energia
   A força centrífuga atira-nos para o lado e coloca-nos numa posição perigosamente desequilibrada. Se toda a nossa energia estiver a ser gasta a empurrar o oponente, então bastará um pequeno toque para cairmos juntamente com ele. Esta é uma força que nos afasta uns dos outros e que não tem lugar no kumite, onde o objectivo é a ligação que mantemos com o oponente.

   A força centrípeta aproxima-nos do nosso oponente. Ele avança e nós reconhecemos o seu esforço e avançamos ao seu encontro, parando o ataque ali mesmo, junto ao seu centro. Esta é uma força que concentra energia em vez de a dispersar, logo é mais eficaz e duradoura que a força centrífuga.


terça-feira, 22 de julho de 2014

Correcções durante o combate

   Imaginem que estão num estágio internacional a fazer kumite com alguém que nunca viram. Ele baixa para zenkutsu-dachi e anuncia que vai atacar chudan o'zuki. Rapidamente pensam que o ataque será algures na barriga e preparam mentalmente um gedan barai. Ele sai rapidamente e lança-vos um ataque ao peito. A defesa falha e o ataque atinge-vos sem qualquer resistência. Agora têm duas opções.

Opção A:
"Pára tudo! Então você disse-me que ia atacar chudan e manda-me um tsuki quase no pescoço? Então mas isso faz-se? Vá vá, ataque-me lá como deve ser aqui na barriga e devagarinho para eu conseguir defender."

Opção B:
Não dizem absolutamente nada, recordam-se que chudan significa o tronco inteiro e adaptam-se o melhor que podem ao oponente de forma a conseguirem defender o próximo ataque, venha ele mais alto ou mais baixo que o que estão habituados.

   Claro que a opção mais correta, mais honrosa e mais guerreira é a segunda, mas entristece-me ver praticantes experientes ainda cometerem este erro. Por mais vontade que tenham em corrigir o oponente durante o kumite, por favor não o façam com palavras mas sim com uma atitude recta que melhor se encaixe no seu perfil.
 
   Já dizia o Mestre Funakoshi num dos seus princípios:

Hitotsu, tekki ni yotte tenka seyo
Primeiro, ajusta-te ao teu oponente.

Mestre Funakoshi (esq) em kumite.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Calcanhar de Aquiles

   Dizia-se que Aquiles era um semideus invulnerável em todo o seu corpo menos no calcanhar, onde acabou por ser ferido e, consequentemente, morto. A lenda do calcanhar de Aquiles foi sendo passada ao longo da História como o ponto fraco de alguém, mas talvez haja um outro significado.
   No Karate (e certamente nas outras artes marciais) há uma postura perigosíssima que nunca devemos assumir. Essa postura surge quando depositamos todo o nosso peso nos calcanhares de tal forma que estamos mais inclinados para trás do que para a frente. Se fizermos isto estaremos derrotados antes de qualquer confronto. Com o peso nos calcanhares não conseguimos avançar perante o perigo e estamos tão vulneráveis que qualquer ataque nos fará cair para trás.
   Quem sabe se a lenda do calcanhar de Aquiles não foi uma forma de os guerreiros passarem de geração em geração a mensagem de que depositar o peso nos calcanhares significava a morte do artista?

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Não quebra!

   O treino está a ser duríssimo, o calor insuportável, já ninguém fala, e o mestre diz que vamos repetir tudo outra vez. Ao ouvir isto temos duas opções. Ou continuamos ou quebramos. Não há meio termo.
   Se continuarmos é porque descobrimos algo em nós que desconhecíamos, uma coragem nova, uma força esquecida. As pernas podem falhar, podemos até cair de joelhos, mas se pendermos para a frente com sofrimento no olhar, então aí é que estamos realmente em apuros porque o que se seguirá será ainda pior. Voltar a erguer-nos depois de termos quebrado é terrivelmente difícil. Certamente muito mais difícil que aguentar o treino sem desistir. E pode até ser perigoso. Sem querer saltar para o extremo em que defendemos alguém e a nossa desistência será fatal para essa pessoa, imaginemos o seguinte cenário: Estamos a fazer espargata sem levarmos as mãos ao chão. Está a doer, claro, mas conseguimos aguentar, descemos mais um pouco, o joelho, é sempre aquele maldito joelho, mais um pouco, só apetece parar, mas o chão já se aproxima, quase que lhe conseguimos tocar, só mais um pouco, a concentração vacila, os joelhos gritam, dobramos e atiramos as mãos ao chão. Quebrámos a concentração e, a custa disso, os ligamentos do joelho.
   O corpo pode queixar-se, tem esse direito, mas cabe à mente ouvir as birras e mesmo assim mostrar-lhe que é possível ir mais longe, muito mais longe.

Monge a dobrar um par de lanças encostadas à garganta.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Postura natural

   Karate pode parecer confuso no início. Então mexo como? Primeiro a mão ou a perna? E olho para onde? E ponho os pés como? E as costas, ficam assim?
   Para quem está a começar, estas podem ser questões pertinentes mas, no fundo, devemos mover-nos o mais naturalmente possível. Imaginem o seguinte cenário:
   Encontram um amigo na rua e vão cumprimentá-lo com um aperto de mão.
   Primeiro fazemos o quê? De certeza que não olhamos para o chão para ver se temos os pés bem colocados, nem sequer avançamos todos curvados para tentar chegar mais longe, nem muito menos mandamos o corpo primeiro para chocar contra ele e só depois é que enviamos a mão, e o olhar de certeza que não está exageradamente focado nele como se o quiséssemos morder. Se no dia a dia agimos naturalmente, primeiro mente, depois mãos, depois corpo, então porque é que no karate havia de ser diferente?


   Já dizia o Mestre Gishin Funakoshi num dos seus princípios:
Posturas formais são para principiantes; depois deve-se estar naturalmente.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Autodefesa

   Hoje em dia fala-se muito em autodefesa. No fundo o que se passa é o seguinte: Temos medo e vamos à loja comprar uma arma para nos sentirmos mais seguros. É isso que é ter aulas de autodefesa. Podemos não saber disparar, nem saber quando disparar, mas agora temos uma arma. Como em tudo na vida, tomar decisões com base no medo é extremamente perigoso para nós e para os outros.
   A verdadeira autodefesa não funciona. Na sua premissa está a ideia errada de que estamos desligados dos outros e podemos salvar-nos e eles morrerem sem que isso nos afecte. Se o nosso objectivo for apenas defender-nos a nós próprios, então o quer que seja que nos atacou irá imediatamente atacar quem está à nossa volta. E viver com a culpa será sempre pior do que se tivéssemos enfrentado o perigo e sido feridos no processo.
   Devemos proteger-nos, mas essa não pode ser a nossa prioridade, porque se for, iremos recuar ou até desviar-nos do ataque, e a pessoa que está atrás de nós, aquela que queremos proteger, sofrerá com isso.
   Mas também não podemos avançar cegos perante o perigo, confiando parvamente que tudo correrá bem e que um escudo invisível nos protegerá. A verdadeira coragem não é isso. A verdadeira coragem é conhecer totalmente as consequências que poderão vir se o enfrentarmos - e mesmo assim avançar.


   Mas se ainda assim insistirmos nisto da autodefesa, há de facto algo que podemos fazer: Evitar sítios e pessoas negativas. Ter uma alimentação saudável. Fazer exercício físico ao ar livre. Dosear a televisão e outras formas de entretenimento. Exercitar a mente com bons livros. Ter uma atitude positiva. Isto é a única autodefesa que realmente funciona.

sábado, 12 de julho de 2014

Causa e Efeito

   Causalidade é uma coisa tramada.

   Imaginem que têm uma torneira a pingar (causa) e não conseguem dormir (efeito). Podem tapar os ouvidos, mudar de quarto, construir paredes mais grossas, ligar a música, revestir as paredes com isolante ou… fechar a torneira. No karate passa-se algo muito parecido.

   Podemos passar o dia inteiro a corrigir pequenos pormenores: a posição das mãos, a fluidez entre os movimentos, a firmeza nos ataques, o ângulo dos joelhos, a forma como os pés tocam o chão, a direcção do olhar, a altura a que os pontapés chegam, a forma como se salta, acreditem, isto não tem fim. E não tem fim porque cada pessoa que está sentada a avaliar vê de forma diferente o mesmo problema. E o problema é que a pessoa que está a treinar esqueceu-se que está em combate, e que tem que atacar de forma nobre, e tem vidas que dependem dela. A falta desta atitude está na causa da maioria dos pequenos problemas. Podemos passar a vida inteira a corrigir efeitos, ou podemos focar-nos na verdadeira causa.


quinta-feira, 10 de julho de 2014

Exames e desafios

   Os exames de passagem de cinto são como importantes rituais de transição. Em vez de os vermos como uma oportunidade para ficarmos nervosos em frente a um júri, devíamos encará-los como períodos de introspecção profunda: o que já alcançámos e o que ainda nos está a escapar.

   Os exames são alturas de crescimento que costumam vir  acompanhados de desafios, idealmente aqueles que o discípulo está a enfrentar naquela etapa do caminho. Se não consegue deslizar, então terá que lançar o tsuki muito mais longe; se tem dificuldade em controlar-se, então chumba se tocar no adversário durante o kumite; se precisa de reforçar a ligação com o céu, então terá que erguer o queixo e enfrentar adversários em todas as direcções.
 
   Mas há muitas formas de avaliar o progresso de alguém. Por exemplo, basta a pessoa caminhar até ao centro da sala e fazer saudação que já temos uma boa ideia do que se seguirá. Caminhar cabisbaixo, com os pés mal assentes, fazer saudação todo curvado, ajeitar o kimono e esquecer-se do nome da kata... pronto, obrigado, pode ir sentar-se.

   Se estamos demasiado preocupados com o deslizar, o chegar mais longe, o dobrar mais o joelho, então provavelmente não estamos preparados para ir a exame porque o que realmente conta é muito mais difícil, e é totalmente mental. Enfrentarmos o medo quando estamos sozinhos; confiarmos em nós próprios quando somos postos à prova. Contra isso basta-nos erguer o queixo e avançar corajosamente.
    Isso sim é um bom exame.


   
   

terça-feira, 8 de julho de 2014

Constituição septenária do ser humano


lsdex.tumblr.com
   Imaginem por um instante que aquilo que são é muito mais que o que vêem quando se olham ao espelho. Imaginem que além de uma componente física, existem ainda mais seis componentes e todas elas estão interligadas e são necessárias para vos constituir. E imaginem ainda que a vossa consciência é como um elevador que viaja dentro destes níveis. Se escolhermos, podemos passar a vida inteira no rés-do-chão, sozinhos, imóveis, sem qualquer sentimento. Esperem, na verdade não. É impossível viver apenas neste nível porque precisamos do nível seguinte para estarmos vivos.
   Quando alguém morre, essa pessoa fica fria porque há algo que abandona o seu corpo. Mas ainda assim somos um pouco mais do que corpos com energia. Temos emoções básicas como a fome, a sede, as paixões instintivas que nos atraem ou repelem. Temos ainda sentimentos mais complexos como a honra e o dever.
   Mas, mais uma vez, somos um pouco mais. Temos uma mente poderosíssima que nos permite comparar, especular, calcular. Esta mente está ligada também aos medos, aos ciúmes, aos egoísmos. É ela que nos permite encaixar o mundo num molde dual: mais, menos, quente, frio, branco, preto, masculino, feminino. Quando uma pessoa morre, tudo isto fica para trás, a nossa personalidade desaparece, e segue o indivíduo, aquele que é indivisível.

   Se escolhermos, podemos manter o elevador da consciência em baixo, podemos apenas existir, mexer, sentir, pensar. Mas se quisermos, podemos viver um pouco mais, e aperceber-nos do que está lá junto ao céu.

   Mas antes do céu, falta-nos trabalhar muito a terra.

   Quis falar nisto porque cada vez mais me parece que as pessoas vêem o corpo físico como a totalidade do seu ser, e por isso dão-lhe tanta importância que se esquecem de tudo o resto. O que sentem e pensam é igualmente real, como um segundo e terceiro corpo que tem que ser limpo, nutrido e cuidado se não fica doente. Tenham mais atenção a isto e vão ver que se vão sentir muito melhor.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Competição e Mutualismo

   Em Ecologia estudam-se as interacções das diferentes espécies umas com as outras e com o seu ambiente. Existem muitos tipos de interacções mas, para simplificar, podemos agrupá-las da seguinte forma: podem ser prejudiciais, benéficas ou neutras para a espécie em questão. E claro que esta simplificação também é válida para as interacções entre seres humanos. Parasitamos alguém quando nos aproveitamos dessa pessoa, seja em termos emocionais, monetários ou de qualquer outra forma, mas apesar de lastimoso, ao menos assim há alguém que sai a ganhar. O mesmo não acontece na competição. Aqui perdem os dois. Então porque é que toda a sociedade parece montada sobre esta relação? Desde o ensino ao trabalho e até no desporto, o objectivo parece ser sempre ficar à frente do parceiro do lado.

Competição - ninguém ganha, todos perdem.
   No Shotokai não participamos em torneios nem outras formas de competição por considerarmos que ela é prejudicial e contrária à filosofia do Karate. Basta ver os princípios do Mestre Gishin Funakoshi para percebermos que o Karate não é para ser aplicado num ringue mas sim fora dele, com toda a gente, durante a vida inteira.

Competição não é Karate, é selvajaria.

   Se precisamos de sobrepor-nos ao outro para nos sentirmos bem, então algo não está certo e devíamos pensar séria e friamente no porquê. Será falta de confiança ou auto-estima; necessidade de convencer os outros daquilo que não somos; falta de ligação connosco, com os outros, com mundo? Será que nos esquecemos que somos irmãos e estamos juntos nesta pequena pérola azul?

Mutualismo - baixar o ego para benefício de todos.
   Se no final ganharmos e todos os outros perderem, então de que serviu o nosso esforço? O ideal seria conseguirmos pôr de lado o nosso ego para transformarmos a competição em mutualismo, uma relação onde ambas as partes saem a ganhar.


terça-feira, 1 de julho de 2014

Shizentai

www.karate.bielsko.pl
   Existem variadíssimas posturas no karate, mas a mais simples e, ao mesmo tempo, mais difícil, deve ser a Shizentai (自然体). A palavra significa simplesmente "postura natural do corpo" mas para chegar a esse estado mental é preciso muito. Só agora começo a perceber um pouco da parte mental, mas já posso falar do resto:

   Os pés devem estar bem assentes no chão, mais ou menos à largura dos ombros, paralelos e apontados para a frente. A força não deverá estar concentrada nem nos dedos nem no calcanhar. Algures na parte da frente é o ideal.
   As pernas devem estar ligeiramente arqueadas e contraídas.
   O tronco, os ombros e os braços devem estar totalmente relaxados, prontos para sair.
   Devemos focar a atenção não só no adversário mas também no que nos rodeia.
   Para não vacilar, ajuda bastante imaginar que a vida de alguém muito importante depende de nós.

   Shizentai pode também ser chamado de Hachiji-dachi e, apesar de haver pequenas diferenças de estilo para estilo, nomeadamente na posição dos pés e na contracção ou não dos braços, a função parece-me ser a mesma: Aguentar o pé, venha o que vier.


domingo, 29 de junho de 2014

Karate universal

Ryu, personagem do jogo Street Fighter,
em kokutsu-dachi a fazer soto-uke.
   Com mais de 16000 praticantes registados, fora os milhares que não o estão, o karate é das modalidades desportivas mais praticadas em Portugal. Isto explica-se pela proximidade que existe entre Portugal e o Japão. Ambos são povos de navegadores localizados nos extremos da Eurásia que sempre tiveram grandes potências como vizinhos. Se o Japão é o país do sol nascente, Portugal é o país do sol poente.

   Foi Portugal que introduziu o mundo ao Japão e o Japão ao mundo, e desde esse dia que a ligação entre as duas nações é forte. Podemos não falar a mesma língua mas temos muitas palavras em comum, e quando nos juntamos, sente-se uma certa cumplicidade.
   
   Mas esta atracção pelo karate não está limitada a Portugal e isso pode ver-se na cultura dos outros países. Não apenas no cinema, com o Karate Kid e todos os outros filmes de artes marciais, mas também nos jogos e outras formas de arte.

   Talvez esteja errado mas acredito que se pedisse a um português sem internet nem televisão para dizer o nome de uma arte marcial, ele provavelmente diria Karate.


sábado, 28 de junho de 2014

Yin-Yang

   Antes de mais, quero deixar bem claro que não sou um entendido na matéria e que tenho consciência que o assunto é extremamente complexo.
 
   Dito isto, é evidente a presença de forças contrárias e complementares em tudo nas nossas vidas, até mesmo no Karate. Todos os movimentos que fazemos têm presente o seu oposto, ainda que em pouca quantidade. Visualizem um soco rápido e forte. O corpo estremece e perde o equilíbrio se não recuarmos a outra mão ao mesmo tempo. No fundo, é como o próprio símbolo: um mar branco (soco) com uma gotinha negra (recuar a outra mão). Isto é equilíbrio, a tal acção e reacção, e ele está presente em tudo. Durante o taiso, quando rodamos os braços, não rodamos sempre para o mesmo lado. Rodamos duas voltas para a frente e duas voltas para trás. Uma das voltas tem energia Yin e arrefece o corpo, a outra tem energia Yang e aquece o corpo. Não acreditam? Então experimentem rodar sempre para o mesmo lado.

   A dualidade Yin-Yang está presente em tudo, até em nós próprios. Um karateka com excesso de energia Yang é demasiado agressivo, brusco, pesado. Um com excesso de energia Yin é demasiado delicado, elegante, esvoaçante. Nenhum destes excessos é bom, nem para eles nem para elas, por isso devemos procurar o nosso próprio equilíbrio, a tal gotinha no meio do mar.



sexta-feira, 27 de junho de 2014

Água mole em pedra dura...

   Quem julga que a rocha é mais forte que a água é porque nunca viu o poder do mar. Fluidez e flexibilidade são qualidades de tudo o que está vivo. Dureza e inflexibilidade caracterizam o corpo morto. Preferem ser o rebento verde ou o ramo seco? Um cresce, aprende, propaga-se; o outro parte-se, cai e desaparece. Mas se assim é, então porque é que o karate hoje em dia é visto como uma sequência vazia de movimentos tão brutos que fazem com que o karateka se transforme numa máquina?


   Todas as técnicas deviam ser fluídas, como a onda que se esmaga contra a parede rochosa e adapta-se e envolve-a e recua para atacar uma vez mais. Da mesma forma que a onda não pára bruscamente, também nós não o deveríamos fazer porque somos mais parecidos com ela do que pensamos.



 Se procurarmos bem, descobriremos que somos fluidos, líquidos até. E se não acreditarem, recordem a percentagem de água que temos no corpo e vejam uns quantos vídeos em câmara lenta de alguém a levar um soco na cara.
   A dureza é ilusória. A verdadeira força esconde-se por trás de um estado mental adaptável, fluido e flexível.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Hikite

   No Shotokai, hikite é o nome dado à preparação que precede todas as defesas. Na minha opinião, há uma filosofia muito nobre por trás deste movimento. Fazer hikite antes de defender é oferecer a oportunidade ao nosso oponente de parar o ataque porque nós, genuinamente, não o queremos magoar. É como se alguém nos atacasse e em vez de desembainharmos a espada para o matarmos ali mesmo, apontássemos a espada à sua garganta enquanto o olhamos com compaixão e lhe disséssemos: amigo, pára agora se não vais morrer.

   O hikite é ainda mais necessário durante as viragens, quando acabámos de executar um ataque contra alguém e vamos virar-nos para trás das costas. Sem hikite, o que aconteceria é que faríamos um ataque às cegas que podia atingir de igual forma um atacante ou uma criança que estivesse de passagem.

   Hikite está directamente ligado ao segundo princípio que Gishin Funakoshi escreveu, a famosíssima frase "karate ni sente nashi" que significa "não existe primeiro ataque no karate". Se for bem feito, o hikite deverá ser suficiente para travar o confronto antes mesmo de ele começar.




terça-feira, 17 de junho de 2014

A importância do caminho

   Ecoa sanbon dentro do dojo; temos que fazer o mesmo ataque três vezes seguidas. O primeiro sai bem, forte e preciso; o terceiro vai longe, acompanhado de kiai; mas e o segundo? Bem, o segundo nem se deu por ele, de tão apressado que foi.

   Dizem que há dois tipos de pessoas mas neste caso há três:
  • Aqueles que apostam tudo no primeiro ataque mas depois vão morrendo aos poucos. São aquelas pessoas mais impulsivas que nunca estão bem no mesmo lugar e só querem começar coisas novas e fazer tudo ao mesmo tempo.
  • Os que só dão o máximo no último ataque porque têm uma inércia dos diabos mas quando vão lançados e focados no objectivo não há quem os agarre.
  • Aqueles poucos que conseguem viver no presente e por isso executam cada movimento como se fosse o último e terminam-no correctamente. São esses que vão crescendo sempre, não porque já vão lançados mas porque querem realmente dar o seu melhor em cada ataque.
   No fundo o mais importante não é começar, por mais difícil que isso seja; nem sequer alcançar o objectivo, aquele que ocupou a nossa atenção durante tanto tempo; mas antes não perder o caminho porque fomos impulsivos e quisemos recomeçar um caminho novo. Simplificando, devemos focar-nos no presente e honrar cada técnica com início, meio e fim.

Foguete com três estágios, cada um com início, meio e fim.